Sunday, April 17, 2022

O Que Vive Lá no Sótão?

Porque me olhas assim?
Com artificio e morte
Alguém decidiu
Conceber-te a ilusão
De que isso que vês
Rasteja diante de ti
No chão em que pisas
Não te disseram
Os monstros na lua
Não vivem lá não
São tarântulas
Habitam em teu escalpe
Pingam pancadas frenéticas no sotão
Onde nunca lá ninguém entrou
Encontram escape
Na madeira porosa
Saem-te pelos olhos
Invadem-te os quartos 
E a sala de estar
Sem portas
Nem janelas
Nem algo que segure
De onde elas saíram
Saem para o mundo
Mas mais ninguém as vê
Contorces-te aterrorizada
Consumida por horrores
Juras que é verdade
Mas é a ti
Que profetizam
De louca
De repente
Confinada em paredes
Que se encurtam
Para cada vez mais perto
Avançam para te comer
Essa aranha gigante
Prende-te os braços
Esmaga-te o peito
Roubou-te os olhos
Olha-te escancarada
Com uma ânsia de te devorar
Preencher o vácuo mortífero
Que vomitas em sala vazia
Cheia apenas de ti
Uma cama com amarras
E tudo que não coube na noite
Em onírica desrealização

Saturday, April 9, 2022

A Invenção do Mundo

Regurgitado do nada
Inteiro, abrupto, meândrico
Por incontável tempo caindo
Num infinito imensurável se si
Até que morosa disposição lhe mordeu
Para o mestre oleiro
Condensar os pensamentos
Solidificar as areias
Virar a ampulheta
Orquestrar o mundo

Mergulhar as mãos
Nas forjas do inferno
Para martelar montanhas
Amaciar planaltos
Talhar terra e mares
Arrefecer oceanos
Lançar essa esfera mal anabolizada
No salão vazio de adornos estéreis
Criar o elenco da trama terrestre
Com deuses complacentes
E demónios convincentes 

Não se sente mais sozinho
Simulando vida de confusão compartilhada
Mas talvez se arrependa depois
Repartido em suas várias partes
É a tendência bélica que sobressai
Para lidar com o medo e raiva
De nada saber e tudo acabar tão depressa
Sem pretexto nem explicação

Saturday, April 2, 2022

Todos os Não-Ditos e Interditos

Se as palavras jorram de ti
Com uma clareza absoluta, louca
De pureza visceral
As minhas jogam às escondidas
Vejo-as aflitas a fugir nas esquinas
Levando ao colo memórias
Que não querem ser tingidas por desgosto

Sempre fora a noite nossa conciliadora
As mais turbulentas tempestades deflagravam
E nós fingíamos que era só lá fora
Os trovões fragmentavam os céus
E na intermitência ficávamos soterrados no silêncio
Quando as línguas de fogo já haviam há muito
Sido engolidas pela cera das velas chamuscadas
Contemplávamos um ao outro
Com as pontas dos dedos
Como torrentes de lava
Que humedeciam
As colinas, as planícies, os vales
E a terra solta à flor da pele replicava
Tremores vulcânicos iminentes a se soltar
Num choque elétrico que inundava
Os corpos suplicantes de endorfinas

Destilei tua caligrafia várias vezes
Purificando a solução, para compreender melhor
A forma de negar o que disseste
Ver outra coisa que não aquela que quiseste
Não aquilo que eu efetivamente senti

As linhas de tua carta são como um gume fino
De um cutelo trepidante sobre nós
Mas que cai cruel com a ponta romba
Mói, esmaga, destrói mas não corta
Este nó que nos une
Entalado à vontade de continuar
O que nos dilacera
Só para apaziguar esta fome de macia concretude
Que abafa a voz rouca do vazio

Descolam-se vestígios do aroma
Solto por teus cabelos ao pincelarem o papel
Com todos os não-ditos e interditos