Friday, December 23, 2022

Só Dentes e Furor

Essa ânsia de ser
Energia potencial
Incauta labareda
Através de paredes ferver
Queimar todas as inibições
Todas as muralhas de oclusa alma
E os fantasmas, prostrados, vingados
Num abismo aterrorizante
Que nem o Diabo conhecia
Arder completamente
O céu da boca, a céu aberto
Esvoace o desejo, lançado ao Olimpo
Sem que se subverta a vontade 
Minha, imperial, a todas as ilhas
Constelações inteiras 
Lançadas ao mar bravio
Que me viram nascer
Ensaguentado, encarniçado
Só dentes e furor

Friday, June 10, 2022

Ângulo Morto

Não te queres demorar
Só mais um pouco
Desta vez?

Já que ao de leve apenas
Te queimas na retina
Alocaste no fundo do crânio
Com perenal duração

E fazes sempre o teste
Vais embora
Para eu ver
Se a dor te guarda
Mais fundo na memória

Já podes aparecer
O deserto afetivo
Atravessado
Por teus dedos
Ainda recolhe
As cascatas do mar
Dividido em dois

A norte quer te ver
Seca o resto do mar
Que me afogo sem ti

E a sul que mais não te veja
Os navios despenham-se
Nessa longa espada 
A meio do oceano

Com Neptuno 
Nas profundezas
E tu caminhas sobre ele
Num longínquo aqueduto
De águas inabitáveis, inabaláveis

Pusesse eu um pé
Em direcção ao conglomerado
De líquidos e espelhos escorregadios
Era-me obliterado cada pedaço de mim
Que não suportava a aproximação
Fosse eu descobrir
Lá em baixo, não havia nada
Nenhum vestígio de ti
Nem oxigénio que me deixasse arrepender-me
Voltar a cima e expirar todo o desgosto
Ficaria lá contigo pesando-me no peito
Sucumbido ao sono eterno

Sunday, April 17, 2022

O Que Vive Lá no Sótão?

Porque me olhas assim?
Com artificio e morte
Alguém decidiu
Conceber-te a ilusão
De que isso que vês
Rasteja diante de ti
No chão em que pisas
Não te disseram
Os monstros na lua
Não vivem lá não
São tarântulas
Habitam em teu escalpe
Pingam pancadas frenéticas no sotão
Onde nunca lá ninguém entrou
Encontram escape
Na madeira porosa
Saem-te pelos olhos
Invadem-te os quartos 
E a sala de estar
Sem portas
Nem janelas
Nem algo que segure
De onde elas saíram
Saem para o mundo
Mas mais ninguém as vê
Contorces-te aterrorizada
Consumida por horrores
Juras que é verdade
Mas é a ti
Que profetizam
De louca
De repente
Confinada em paredes
Que se encurtam
Para cada vez mais perto
Avançam para te comer
Essa aranha gigante
Prende-te os braços
Esmaga-te o peito
Roubou-te os olhos
Olha-te escancarada
Com uma ânsia de te devorar
Preencher o vácuo mortífero
Que vomitas em sala vazia
Cheia apenas de ti
Uma cama com amarras
E tudo que não coube na noite
Em onírica desrealização

Saturday, April 9, 2022

A Invenção do Mundo

Regurgitado do nada
Inteiro, abrupto, meândrico
Por incontável tempo caindo
Num infinito imensurável se si
Até que morosa disposição lhe mordeu
Para o mestre oleiro
Condensar os pensamentos
Solidificar as areias
Virar a ampulheta
Orquestrar o mundo

Mergulhar as mãos
Nas forjas do inferno
Para martelar montanhas
Amaciar planaltos
Talhar terra e mares
Arrefecer oceanos
Lançar essa esfera mal anabolizada
No salão vazio de adornos estéreis
Criar o elenco da trama terrestre
Com deuses complacentes
E demónios convincentes 

Não se sente mais sozinho
Simulando vida de confusão compartilhada
Mas talvez se arrependa depois
Repartido em suas várias partes
É a tendência bélica que sobressai
Para lidar com o medo e raiva
De nada saber e tudo acabar tão depressa
Sem pretexto nem explicação

Saturday, April 2, 2022

Todos os Não-Ditos e Interditos

Se as palavras jorram de ti
Com uma clareza absoluta, louca
De pureza visceral
As minhas jogam às escondidas
Vejo-as aflitas a fugir nas esquinas
Levando ao colo memórias
Que não querem ser tingidas por desgosto

Sempre fora a noite nossa conciliadora
As mais turbulentas tempestades deflagravam
E nós fingíamos que era só lá fora
Os trovões fragmentavam os céus
E na intermitência ficávamos soterrados no silêncio
Quando as línguas de fogo já haviam há muito
Sido engolidas pela cera das velas chamuscadas
Contemplávamos um ao outro
Com as pontas dos dedos
Como torrentes de lava
Que humedeciam
As colinas, as planícies, os vales
E a terra solta à flor da pele replicava
Tremores vulcânicos iminentes a se soltar
Num choque elétrico que inundava
Os corpos suplicantes de endorfinas

Destilei tua caligrafia várias vezes
Purificando a solução, para compreender melhor
A forma de negar o que disseste
Ver outra coisa que não aquela que quiseste
Não aquilo que eu efetivamente senti

As linhas de tua carta são como um gume fino
De um cutelo trepidante sobre nós
Mas que cai cruel com a ponta romba
Mói, esmaga, destrói mas não corta
Este nó que nos une
Entalado à vontade de continuar
O que nos dilacera
Só para apaziguar esta fome de macia concretude
Que abafa a voz rouca do vazio

Descolam-se vestígios do aroma
Solto por teus cabelos ao pincelarem o papel
Com todos os não-ditos e interditos

Thursday, March 31, 2022

Lune Noir

Estranha hora
Na cegueira da noite
Para colher
Negras orquídeas

Em paisagens atentas
Banhadas pela luz
Da velha lua nova pairando
Em agoiro do retorno do recalcado


Ao cimo
Velada
Ínvia
Lívida
Infinita
Indefinida

Espia os homens
Loucos como as marés
Servem-se de isco ao desejo
Ingénuos, enlaçam-se ao engano
Avezados a vaidades e veleidades
Desdenham o inebriante enleio
Que puxa seu coração
Para o fascínio de estrelas distantes
Enamorados por seu brilho

Na ilusão de as poder alcançar
Algures perdidos
No frio cósmico
Sem suporte de vida
E nulo afeto
Morrem a meio
Afundados
No esquecimento

Thursday, March 17, 2022

Sono, Sonho, Sóbrio em Sentimento

Tão baixo
Assombrado
Estática da televisão
Olhos calados
Impregna-se um pesar

O espaço aglutinado entre os lençóis
Denúncia a ausência de outra fonte de calor
Debate-se com a escassez de um elo de ligação
Mas finge-se de morto
Como se nada disso importasse
Quem o visse ali, ninguém diria
Sangra por todos os poros

Ao longe
Imagina-se vida
De quem ignora a madrugada
Escondidos em deslizes de gato
Aparecem em sonhos como panteras
Fantasmas desta casa, de caras tapadas
Atrás de mim, deixo-os para trás
Corro desalmado atrás de vulto que foge
Entretanto me encontro comigo mesmo
Não me reconheço, odeio-o em segredo
Algo em nós, que nenhum quer que seja seu
Trocamos olhares e esgares
Fica no meio algo por dizer, algo por perceber
Sem declarações de guerra, nem oferendas de paz
Sem olhar para trás, nem virar as costas
Deixo-o ir
Ele vai
Tresmalhado

Espião, evade-se entre momentos de insónia
Extrapola-se pela barreira hematoencefálica
Erra pelo corpo, nó na garganta, tremores, arritmias
Prende a respiração, atira corpo em queda livre
Volta mais tarde em vigília baixa
Noutro corpo, noutra forma
Transmutado em qualquer medo
Grande demais para aparecer
Repetido em cada disfarce 
Mais diluído do que da última vez
Repelido, escapa novamente, sempre fugidio

Wednesday, March 16, 2022

Grandes Sinais no Céu

Neblina sépia 
Assalta os céus
Faz de sol lua
Asfixia estrelas
Engole lua
Recua marés
Convoca calamidade

Cega os homens
Reféns em alto mar
Sem astros 
Que digam
Para onde ir
Na noite mais escura
Trémulos os barcos
Medo nos corações

As trevas no fundo
Fazem um convite
Farão o impensável
Antes de aceitar

Tiram a pele
Arrancam a carne
Presa nos ossos
Despem qualquer vestígio
De humanidade
Ovelhas mansas na civilização
Lobos famintos em alto mar
As trevas do fundo
Pronunciam-se novamente
Indignos de voltar a terra
Lançam a vergonha
E tudo o que resta deles
Para onde jamais Deus possa ver

Sunday, March 13, 2022

Além do Homem

Antropomorfo, hominídeo, bípede
Coberto de mansa pele
Carne envolvente em densos ossos
Cartilagens, tendões, músculo sentimental
Olhos negros, de desesperança
Ingenuidade de si ou completa alienação
Ombros, braços e mãos
Para aguentar o peso do mundo
Quadris, pernas e pés
Tentam negar a gravidade centrípeta

Mas existe um espaço incógnito
Intocável pelas palavras
Algures dentro dele
Um habitat alóctone
Para um mastodonte 
Pouco confundível com humano
A carne sufocada por densos músculos
Grita um vermelho pulsante
De convoluta raiva e fúria crua
Animalesca ferida a céu aberto
Feroz olhar, rugido trovão, desfaz, aniquila
Aprisionado, noutra dimensão
Estremece todo o vazio com ecos vorazes
Irrompe o pensamento com febril insurgência
Preso em seu exílio de mil anos
Enquanto esse hóspede o contém

Onde Algo Possa Surgir

Aproximo-me com cuidado
Quero ver mais perto
No ponto de convexão
Sem parapeito
Nem arquitetura de enfeite
Escorrego por momentos
Em vertigem súbita
Deparo-me com a magnitude desse abismo
É espada de Dâmocles 
Que escorre pela garganta
Nessa hora de vil descoberta

Nunca imaginei
Estrutura humana
Ou por natural convenção
Tão medonha quanto esta
Esculpida de maciço pedaço de vazio
Um rochedo de nada
Negativo de existência
Profunda garganta aberta
Despejo pesado olhar para o fundo
Num eco reverberante de silêncio
Estremece ossos
Estilhaça dentes
Rebenta tímpanos

Imensidão de lugar inóspito
Esse dentro de mim
Engole fronteiras 
De ontem para o dia seguinte
São esses os alicerces
Onde julgo aqui me construir

Saturday, March 12, 2022

Estados Confusionais da Mente

Ao tomar posse de mim
Depois desse tempo
Em que me dividi
Duas vontades
Dois opostos
Sequestros de si
Desejos multiplicados
Por cada interdito
Mais um capricho
Que não impedi
Era claro para mim

Essa rede de interlocutores
Encontrados a cada nó dado
Para não perder o norte
Até um ideal de mim
Foi deliberada tentativa
De construir arcabouço
Para aguentar impacto
De ser só metade do que quis

Breve ideia de integração
Seria desarrazoada a crença
Reduzir múltiplas nuances do ser
Todas as urgências da alma
Em baldio desbravado
Complacente com essa incompletude
Por apenas um hemisfério à tangente

Cada Palavra, Cada Engano

Prostrado sobre o horizonte
Diluem-se por todo o corpo
Pensamentos parciais
Tomam forma mais sólida
Erguem-se morosos
Ganham consciência de si
Num eco ensurdecedor
Ornamentos por cada pesar
Emaranham-se a medos ampliados
Fazem-se gigantes na fusão
Entre omnipotência e queda livre.

Embalo-me em paisagens oníricas
Pela primeira vez tocadas
Revisitadas em sonhos esquecidos
Não fora sentir que já lá estive
Não fora sentir domínio
Desses pastos de torrentes de lava
Já não me enlouquecem assim.

Deixo-me seduzir
Por cada mentira
Solta por incrédulos lábios
Lambidos por chamas
Deste inferno sem ti

Friday, March 4, 2022

Einsamkeit

Silêncio de azul pálido
Despe-se no quarto
Com esguia mordida
De sabor metálico na língua

Sou transportado para memória onírica
Onde nunca estive, mas sempre senti
Labiríntica floresta, em noite de lua subreptícia
Desvalido numa brancura álgida

A ceifa de ventos glaciares saqueia
Qualquer centelha de febre que nega a falta
Num arquipélago cada vez mais insular
De ligações iónicas que perdem a referência de si
O corpo, ponte do dentro e fora
Perde toda a diplomacia para uma cortina de ferro
Negando a derradeira perda do que pode ser perda de si

Thursday, March 3, 2022

Ouroboros

Planeio desencontrar-me
Separar caminhos de mim mesmo
Largar o incómodo de fingir ser
Não saber em primeira mão de quem fujo
Perseguindo contornos de falta
Falhe a memória do que lá estava
Memória ligada à dor que fica em teu lugar
Mas não importa mais essa coisa
Inútil pensar, evito sentir, sem mais arder
Corro para fora de mim, contra a multidão
Perder-me de vista, dessa sina que é estar só
Tenho planos para depois
Talvez possa esconder-me nesse interposto
Não me notem, não me falem
Não vejam o que me falta
Esperem até ao fim
Com outras camadas
Mais decidido a ignorar
Quem fora eu, não ser muito diferente
Desse agora pintado de outras cores

Tuesday, February 22, 2022

Compulsão à Repetição

Sempre fui, sempre estive
Limítrofe da realidade e desejo
Onde esses dois reinos se beijavam
Era eu testemunha de imprudente paixão
Em mim reverberava a história repetida
Desencontros, traições, amores de guerra
Séculos de tradições de narcisismo falhado
Sem nunca declarar imposto
Das terras roubadas, delegadas a ninguém
Renuncio à herança de absolutos e vazios 
Viver entre fronteiras entre mim e o outro
Desmascarar os sábios e os reis
Não eram eles dignos da honra e da coroa
Sem divindades nem soberanos
Caíram todos antes de mim
Devorados por demónios 
De suas próprias entranhas
Com Roma em chamas ante mim
Abdico do mito e glória de outrora
Entro nesse pesar de meu próprio pé
Desapareço pela noite oclusa
Embalado no medo de ser sucedido
Onde todos os olhos têm dentes
Onde todos os reinos se dissolvem
Sem saber se verei a clareia de lua nova
Sem saber se ofereço sanidade a troco de nada

Tuesday, February 15, 2022

Quarto Escuro

Há um lugar dentro de mim
Descer as escadas, ao fundo do corredor
À direita, continuar até se perder de vista
Encontra-se uma fechadura, só eu tenho a chave
Lá dentro, está um quarto escuro
Assombrado por todos os medos, todas as dores
Das mais brandas, até às que todos sentem antes de morrer

Tenho de lá entrar
Mas tenho medo
Tenho medo do pavor que possa lá encontrar
Aquelas dores fantasmas
De todos os membros arrancados

Quero trazer alguém comigo
Para não ter tanto medo da solidão
Perder-me nos labirintos da escuridão
Sequestrado por sombras indiferenciadas
Esquecer-me
De ti
De mim
De que existe um mim sem ti
De que existe um eu dentro de ti
Esquecer-me de um eu, para mim 

Mas já não estás aqui
Nem lá fora
À espera de mim 

Podias entrar comigo
Não... não precisas de entrar...
Já entraste antes de mim

És tu a razão
Por estar hesitante
Não querer entrar
Não querer encontrar
A ausência espectral
De teu corpo arrancado de mim

Saturday, January 22, 2022

Azáfama da Citadela Interior

Não há momento em que a minha mente se cale
Uma cacofonia de vozes, de vontades
Acotovelando-se para serem ouvidas
Intempérie de sentimental sentença
Não há clemência, uma debandada de veleidades
Devaneios, nuvens de pensamento
Não se sustentam, pesadas, caem
É um estrondo, medonho
Aproxima-se finalmente
O céu, tira-se o véu
Embate, todo o cosmos, na porra da Terra
Nunca vistos antes, nefilins, indígenas da mente
Pouco sapientes, agora que os invocámos
É uma desgraça... tropeçam na estratosfera
Não sabem andar por aí, parecem saídos de Babel
Piores estamos nós, depois de milénios de guerras santas
É um espetáculo vergonhoso
Seria heresia, se aqui não estivessem descobertos
Expostos a descendentes de carbono
Tanta coisa e são como nós
Desajeitados, apavorados, neuróticos... se tiverem sorte
Com esse aparato todo
Já me esqueci o que tanto me atropelava
Acabou-se a insónia, voltar a dormir.... para quê?
Estou tão bem assim acordado
A noite lá fora é cúmplice do silêncio
Ouvido pelos que permanecem em vigília
De luzes apagadas, fingindo estar a dormir
Sinto o contraste do aqui e do lá fora
Incógnito, espreito como que numa cilada
A azáfama da citadela interior
Só acessível pela noite quieta, que se demora deliciosamente
Deixando escorrer, de uma nascente de memórias ligadas a afecto
Revisitando o outrora que sustenta o vigente
É o badalar, abafado pela distância
Que desperta uma reminiscência ao de leve apagada
De uma disposição horizontal
Um pouco acima do solo
Enredado por oblíquos lençóis
Espera, estava a dormir?

Friday, January 7, 2022

Jogo de Luzes

Na diagonal incide um difuso
De ultravioletas e infravermelhos
Toca-me, delimita-se nos contornos 
Impressos atrás de mim
Com relutância, 
Reconheço-me no negativo de mim
Uma inegável, 
Desconfortável parecença, marca presença, 
Ali fica, me encarando, tão estupefacto quanto eu.
Habituo-me à sua permanência todos os dias à mesma hora

Sem me dar conta, etéreos zepelins
Brincam com as pronunciadas tonalidades
Parecem dar vida a essa parte de mim,
Gesticula algo agora, não tem voz,
Ainda é muito novo, não aprendeu a falar

Percebo-o na sua incoerência
Uma tempestade de experiências
Que não se contêm na palavra
Sentem-se no alvoroço da hora tardia
Em que me vejo tão pequeno,
Perante essa torre alta que sai de mim